quinta-feira

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tinhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
Uns olhos como todos os outros.(...)
Não temos nada para dar.
Dentro de ti não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.

"Eugénio de Andrade"

1 comentário:

Anónimo disse...

Carla said...

Um poema belíssimo do nosso grande Eugénio de Andrade... Fico sempre de coração apertado quando o leio. Aquele Adeus do fim parece que fere. Fere como qualquer adeus, que é uma palavra tão triste... mas por vezes tem mesmo que ser, não é? Estive a dar uma leitura por este teu cantinho e gostei muito. Um beijo grande.